kitschnet - mini-pratos ao balcão: Babéis


5.5.14

Babéis


À medida que a nossa intimidade relativamente a certos homens e mulheres cresce, tornamo-nos capazes de «ouvir» em leves alterações de ritmo, de velocidade da fala ou da entoação aquilo que eles nos estão na realidade a comunicar sem o dizerem explicitamente. […]
O ser humano realiza assim um acto de tradução, no sentido mais pleno da palavra, quando recebe uma mensagem verbal de outro ser humano. O tempo, a distância, a disparidade das perspectivas ou dos pontos de referência, tornam a tradução mais ou menos difícil. Quando a dificuldades ultrapassa um certo limiar, o processo deixa de ser reflexo para passar a ser consciente. A intimidade, em contrapartida, resultante quer do ódio quer do amor, assegura uma tradução confiante e quase imediata. Depois de, ano após ano, e de lugar em lugar, terem trocado entre si, como bolas de malabarista, os mesmos signos verbais, os casais errantes e inseparáveis de Beckett experimentam uma compressão mútua próxima da osmose. Na intimidade, a linguagem corrente exterior e o fundo da linguagem privada assumem uma relação de concordância crescente. A dimensão privada assume uma relação de concordância crescente. A dimensão privada penetra rapidamente as formas habituais do discurso público, sobrepondo-se-lhes. Documentam-no as notas que evocam o mundo animal ou da infância e que aparecem na linguagem dos adultos. Com o envelhecimento, o impulso de traduzir atenua-se e os pontos de referência tendem a ser cada vez mais de ordem interior. Os velhos ouvem menos e ouvem-se sobretudo a si próprios. O seu dicionário é cada vez mais o da esfera das recordações privadas.
Estou a tentar estabelecer um ponto elementar, mas decisivo: a tradução entre línguas é o tema principal deste livro, mas é também via de acesso a uma interrogação sobre a linguagem. A «tradução», devidamente compreendida, é um caso especial no arco de comunicação que cada acto de discurso bem sucedido descreve no interior de uma língua dada. Ao nível interlinguístico, a tradução levanta problemas de uma densidade por vezes visivelmente intratáveis; mas os meus problemas abundam, a um nível menos patente ou, regra geral, descurado, no interior de cada língua. O modelo «emissor-receptor» que qualquer processo semiológico e semântico representa é equivalente em termos ontológicos ao modelo «língua de partida-língua de chegada» que encontramos na teoria da tradução. Nos dois casos, encontramos «a meio caminho» uma actividade interpretativa de decifração. Quando duas ou mais línguas se articulam entre si, as barriras intermédias são evidentemente mais sensíveis e a busca de compressão torna-se mais reflexiva. Mas os «movimentos do espírito», para falarmos como dante, são rigorosamente análogos. E o mesmo se passa, como veremos, com as causas mais frequentes de mal-entendidos ou, o que vem a ser a mesma coisa, de fracasso da tradução. Em resumo: no interior de uma língua ou entre as línguas, a comunicação é tradução. Estudar a tradução é estudar a linguagem.
O facto de dezenas de milhares de línguas diferentes e mutuamente incompreensíveis terem sido ou serem faladas no nosso pequeno planeta é uma expressão manifesta do enigma profundo da singularidade humana, daquilo que faz com que dois seres humanos não possam ser totalmente idênticos do ponto de vista biogenético ou biossocial. O episódio de babel confirmou e desdobrou a tarefa interminável do tradutor, mas não a iniciou. Em termos lógicos, não havia qualquer garantia de que os seres humanos se compreendessem uns aos outros, de que os idiolectos se fundissem nessa forma de consenso parcial que são as formas de discurso partilhadas. Em termos de sobrevivência e de coerência social, esta fusão pode ter-se revelado uma vantagem adaptativa decisiva e precoce. Mas, como observava William James, «a selecção natural no que se refere à comunicação eficaz» poderá ter tido um preço considerável. Este terá incluído, não só o ideal, visado pelos poetas, de uma voz totalmente singular, da «adequação» única entre os meios expressivos de cada indivíduo e a sua imagem do mundo. Estou a pensar também no «murmúrio luminoso» dos códigos não verbais, nas formas sensoriais do olfacto, do gesto e do ouvido absoluto que os animais desenvolvem, e talvez ainda em certas modalidades de comunicação extra-sensorial […], que assim terão desaparecido do repertório da humanidade. A linguagem articulada teria sido, deste modo, um efeito da selecção natural, imensamente vantajoso, mas também redutor e conducente a um estreitamento parcial de um leque mais amplo de possibilidades semióticas. Uma vez «escolhida» essa via, a tradução tornava-se inevitável.
pp. 75-76

Como blocos erráticos, todas as línguas partilham uma miopia comum; nenhuma delas pode pronunciar toda a verdade de Deus ou dar aos que a falam a chave do sentido da existência. Os tradutores são homens que tacteiam, procurando-se, no interior de uma bruma geral. As guerras religiosas e a perseguição de supostas heresias são um resultado inevitável da babel das línguas: os homens deformam e pervertem as palavras uns dos outros. Mas há um caminho para sair das trevas: aquilo a que Böhme chama a «linguagem sensual» — a língua imediata e livre do instinto, a língua da Natureza e do homem natural […]. A gramática de Deus ressoa ainda nos ecos da natureza, e basta que a saibamos ouvir. p. 91

Os argumentos que afirmam a existência de uma ciência linguística extraem o seu conteúdo da suposição de um paralelismo com a lógica formal e com esses tipos de investigação psicológica e estatística experimental que são, de facto, susceptíveis de uma abordagem precisa e quantificável. Talvez a palavra humana não pertença a essa ordem de realidade. Os problemas postos pela ligação indissolúvel entre as modalidades de exame e o objecto examinado, a dinâmica de instabilidade que resulta da necessidade de usarmos a linguagem para estudar a linguagem, impossibilitam provavelmente uma sistematização rigorosa, para já não dizermos visando a exaustividade. Tal é, em termos de epistemologia, o dilema radical. Não se trata de uma questão de natureza convencional ou técnica. Há um autismo ontológico inevitável, um movimento que tem lugar no interior de um círculo de espelhos, sempre que reflectimos conscientemente sobre a linguagem, sempre que reflectimos a linguagem.
O pensamento reflexivo sobre a linguagem configura uma tentativa de sairmos da pele da nossa própria consciência, esse revestimento vital mais intimamente envolvente, mais estreitamente entretecido na nossa identidade que a pele do nosso corpo. pp. 140-141


George Steiner, em Depois de Babel, numa boa tradução de Miguel Serras Pereira para a Relógio d’Água .


posted by pimpinelle