kitschnet - mini-pratos ao balcão: Mandhélia


14.2.14

Mandhélia

Leio o texto de Hélia Correia que foi profusamente partilhado por muita gente das minhas relações sob o mote «um grande, grande texto». Gostar de como está escrito, identificar-me em parte com as ideias da autora, compreender o que ela diz e onde quer chegar não significa que concorde com tudo. Houve duas passagens em que embati, logo ao início:
Parece, às vezes, que o cenário da ficção científica assentou no planeta actual: que criaturas mais ou menos humanóides nos conquistaram pelo interior e desapoderaram-nos de tudo, esperança, dignidade e alegria.
 
Antes de mais, vivemos tempos duros mas não vivemos numa ditadura. Estamos longe do tempo em que comboios levavam milhares de pessoas para o Inferno, e não me parece que caminhemos nessa direcção. Por muito duro que o presente seja. Que é. Sei-o bem e jamais douraria a pílula.

Mas. Não podemos exigir que os Outros (sempre os outros, agora até nem humanos) nos dêem esperança, dignidade e alegria. Temos de ser nós a criá-la, a arrancá-la à terra e, sobretudo, de dentro de nós mesmos.
Nos discursos de indignação, com que estou solidária em parte, oiço sempre – e só – eles, eles roubam, eles matam, eles esfolam. Eles tudo e nós nada. Nós seríamos felizes não fosse por eles. Por acaso elegemo-los, mas foi por acaso, apenas por isso.

Eles são grandes e nós pequeninos e não há nada que possamos fazer a não ser chorar.

Eu acho que podemos crescer. Acho que os senhores maus não se vão embora sozinhos e acho que a pancada não é uma boa maneira de os tirar do lugar. Acho que temos de ser nós a encontrar maneira de – adultos, sem pedir desculpa nem pedir a chucha – ocuparmos os seus lugares.

Nem por um segundo abdiquei do sonho – e é por ele que vamos –, mas não me digam que são os outros que mo devem por inteiro, que têm de mo dar obrigatoriamente. Não darão, terei de ser eu a concretizá-lo. Nós. Connosco. Porque eles não são alienígenas, eles são nós.

Nas conversas nos transportes, no café, é sempre ela – a colega, a patroa – e sempre ele – o namorado, o fiscal da EMEL – que são odiosos. E dizem ele com nojo. E com maiúscula. Nós nunca, nós anjos. Só que nós eles. E eles nós. A irresponsabilidade dos governos começa na nossa própria desresponsabilização, perante os outros e, pior, perante nós mesmos.
 É como se entre os protestantes e o poder não houvesse trajecto, não houvesse natureza contínua. Duvido até que conseguissem procriar se a carne de uns e de outros se encontrasse. Respiram ares diferentes e não faz sentido algum que certa retórica da esquerda os desafie a que experimentem a pobreza, a que tentem viver com o salário que destinaram para os indefesos. Provavelmente viveriam bem porque não se alimentam como nós. Nem dormem como nós. Talvez nem morram. A verdade é que pouco pensamento nós conseguimos produzir sobre eles. A desumanidade é um mistério.

Só pode ser desumano quem é humano em primeiro lugar. A referida descontinuidade só é acentuada quando nos distanciamos. Esses outros que não morrem (!) nunca foram crianças? Não têm medo? Filhos a quem desejam o melhor? Esperança, ainda que nas coisas erradas? Podem ter mau carácter, ser criminosos, maus exemplos de se ser humano, e serem nesse aspecto um pouco diferentes de nós, mas nós somo-los em certa medida. Quão diferentes podem eles ser?
Dentro de cada um de nós há pulsões que nos causam repulsa, mas estão lá. De mentir, roubar, matar. Negá-lo, separarmo-nos disso, é clivar. É o abismo, é caminho aberto para a esquizofrenia, a fragmentação, pessoal e social.
O outro tem de começar a ser compreendido, acolhido de algum modo, para poder ser transformado. Pormo-nos à margem, acima, inalcançáveis, eternamente desconsolados no nosso Olimpo de incompreensão, é sermos para sempre vítimas desse fosso e do inimigo.
Podemos distanciar-nos do mal o mais que quisermos, mas ele é banal e está, com percentagens de concentração variadas, por todo o lado. E mesmo que não esteja em nós, anda por perto (qual Six Degrees of Kevin Bacon). Se o desumanizamos, ele deixa de ser julgável, compreensível, transmutável. O pedófilo, o assassino, o corrupto não o são no éter, não basta condenar, dizer «monstro» e virar costas. Até porque é impossível. Ele é o tio, o pai, o filho, o eu. Eles são fruto da nossa sociedade, passaram por escolas, universidades, foram educados por uma família. O problema é de todos. Não somos todos igualmente culpados, mas não podemos demitir-nos do nosso papel. Não adianta, porque não basta, termos cuidado com os outros, ou com as palavras que usamos, temos de ter cuidado connosco e com os nossos e, sobretudo, procurar coragem (dentro de nós, uma vez mais) para denunciar, combater e tentar mudar o que está mal, e esperança, para acreditar que a mudança é possível.
Não é a desumanidade que é um mistério, é a humanidade. Ser-se humano também é ser-se mau. Quanto mais cedo aceitarmos isso mais cedo poderemos começar a sarar feridas e abismos.

Afinal, apesar dos horrores do século passado e deste, do sobrepovoamento, das mudanças climáticas e da inversão dos pólos magnéticos do Sol, nunca se viveu com tanta paz e prosperidade no mundo (li algures). Estamos longe, mas já estivemos mais. Continuemos a abrir os olhos e o coração. Mandela, cara***!

Pronto, já me pronunciei. O resto do texto é bom, dá que pensar e vale a pena ler. (Gosto especialmente da ideia da última frase: a dignidade conquista-se e a indignação a isso ajuda.)

posted by pimpinelle