A minha praça da república, o meu café central
Podemos chegar ao largo da estação a partir de muitas
artérias. O mais habitual é chegar vinda da própria estação de comboios, a
que só a esta distância reconheço encanto, ou vinda do paredão, ainda
embrulhada na toalha de praia ou vestida normalmente. Cascais era a civilização, as lojas, as pessoas, os restaurantes. Imaginemos que
venho da estação, que vim de comboio e até paguei bilhete. Caminho agora em
direcção ao McDonald's onde comprava hambúrgueres depois de vir do rugby e em cuja esplanada li Uma Aventura no Carnaval de enfiada.
Seguindo em frente, temos a ourivesaria onde me compraram o relógio mais giro
do mundo e cuja montra não deixava de espreitar sempre que lá passava. Ao lado,
um pequeno restaurante chamado Golfinho, onde durante alguns meses de um qualquer Verão serviram os
melhores hambúrgueres de sempre. Isto à direita. Se olhar para a esquerda, há
um banco e, ao fundo de uma rua que ali começa, um bar que estava para
trespasse e que com amigos, já não sei com quais, pensei alugar, e ainda a
Companhia Marítima e os seus cobiçadíssimos biquinis, praticamente inalcançáveis
pelo preço e pelo tamanho. Num aniversário, fui lá escolher um fato-de-banho.
Maravilhoso, amarelo às risquinhas cor-de-laranja. Quando saio da água, pânico. É transparente.
Ainda o guardei durante uns anos, alimentando vagamente o sonho de o forrar. Voltemos
à rua principal. Depois de uma loja de artesanato que nunca se vende e de uma
sapataria onde a minha mãe comprou uns sapatos e insultou uma empregada com um
palavrão (já cá fora, longe da dita), temos à direita algumas lojas sem
interesse antes de dobrarmos a esquina e chegarmos no topo. Da rua, do mundo. Nos
próximos duzentos metros de calçada polida irão desenrolar-se os dramas, os entusiasmos, as
descobertas, as vergonhas e as contas à mesada. Tenho dez, treze, quinze, dezoito anos.
À esquerda, neste ponto, a rua não interessa muito. À direita,
a primeira banca de bugigangas, geralmente fraca. Mais uns passos e
encontramos os dois primeiros cafés-restaurantes, num dos quais comi o primeiro cozido à portuguesa de que me lembro (no primeiro andar, com
vista para a rua chamada «beco da Saudade» ou coisa muito parecida) e onde uma
vez estive sentada com o meu pai e a minha irmã a curar a bebedeira do primeiro
à força de cafés e limonadas. Muito triste, avancemos. À esquerda, uma loja de
óculos-de-sol, de desporto, depois de óculos-de-sol novamente (ou ao contrário).
Uns passos adiante, um oculista que promete exames de optometria gratuitos. Uma
vez entrámos, diagnosticaram-me falta de óculos e viemos embora, com o meu pai
a balbuciar que tudo não passava de um esquema para nos fazerem gastar
dinheiro. À esquerda temos agora uma sapataria fancy cuja montra atrai
sobretudo estrangeiros. Há muito mais banco, na loja, de veludo, corrido a toda
a volta, do que sapatos, o que é espantoso para os padrões actuais, o que me
faz saudades. À direita, uma sapataria só com dois bancos individuais e
uma série de sapatos. Comprei lá uns Port Side e, não muito mais tarde, os meus
primeiros sapatos de salto alto, umas botas castanhas óptimas, de pele, que bati até às
últimas (as únicas, até hoje, com fecho atrás e não de lado). Agora, do lado
esquerdo, há uma relojoaria, a relojoaria onde se trocam as pilhas e braceletes
do Swatch, onde se compra uma medalha de comunhão para alguém. À direita, nova
banca de tralha, com brincos e brilhos e elásticos e ganchos e outros
imprescindíveis. Com a fartura de chineses, provavelmente já não existem estes vendedores
de elegâncias ambulantes. Bem, talvez ainda haja um ou outro.
Descendo um bocadinho, temos à direita a entrada para as
galerias comerciais. Escuríssimas, falidas desde sempre, sem nada que
interesse excepto, no primeiro andar, uma gelataria-crêperie onde, com primos e
avó, pai e irmã por vezes tinha a sorte de me poder lambuzar com o que me apetecesse experimentar nesse
dia. Ainda sinto a massa do crepe, o amargo da laranja e o doce do mel na
língua. Na cave destas galerias desertas, numa esquina onde ninguém espreita,
há beijos compridos e também eles lambuzadíssimos com o namorado dos catorze
anos.
Voltando à superfície, se andarmos mais um bocadinho temos à
esquerda nova gelataria-crêperie onde terminei um namoro e à direita a sapataria
onde se vendem os sapatos de carneira. A Benetton (onde comprei uma t-shirt
azul escura que usei até à exaustão e uma camisa de ganga maravilhosa de que só
me desfiz no ano passado) está mais abaixo. Do lado oposto, abriu anos mais
tarde uma loja de meias, às cores, até ao joelho! Comprei umas, esforçando-me para
não as furar, o que acabou por acontecer. A seguir a essa loja de meias e de
esquina, depois de um entroncamento com uma rua que nada interessa aos locais e
que a mim só me lembra histórias tristes, está a Valentim de Carvalho, onde escolhi
CD para oferecer à minha irmã nos anos, embora fosse principalmente eu quem os quisesse
ouvir. Jewel e Brian Adams. Quinze anos mais tarde ainda existem e algumas dessas músicas vieram a ter
significado. A minha irmã gostou dos CD e tudo está bem quando acaba
bem.
À direita, mais uma banca de tralha onde se gasta mais algum
do pouco que se tem e se segue em frente. Agora uma Panisol, onde raras vezes
entro. Do lado oposto abriu uma loja nova, com camisas baratíssimas, são
de rapaz mas são coloridas, promoções óptimas, trago duas. Não sei, até hoje,
onde tinha a cabeça quando as comprei e quando as usei. Qualquer coisa wool, o nome da loja, seria? À
direita, a entrada para a rua do Lucullus. Se formos em frente vamos ter aos
frangos, se virarmos para cima, vamos para o negativo da rua direita, sem vida,
mas com Zara e Santini. Se não virarmos de todo, como quase sempre fazia,
seguimos em frente para o largo dos pubs ingleses, onde mais tarde descobri a
cidra, ou viramos à direita, para a baía e as barracas que vendem sea shells
by the sea shore, onde uma vez me ofereceram um colar de pérolas que mais parecem
bagos de arroz tufado e que eu, na solenidade dos meus doze anos, decidi reservar
para ocasiões solenes.
Em noites de insónia, percorro mentalmente lugares em
pormenor. Não me ajuda a adormecer, é apenas exercício. Mas apercebo-me subitamente
e não sem espanto que essa que fui, o barco de TesEU, is no more. Se calhar é
isso ver navios.
Não desço a rua Direita há anos. Da última vez que estive ali perto, chovia a cântaros e não houve passeio. Não é preciso.
Diário de bairro III
Enquanto pago o meu almoço num anónimo café lisboeta, por onde entra calor e o barulho dos carros, vejo e oiço na televisão suspensa a notícia de que, algures em Portugal, lobos atacaram um rebanho tendo matado duas dezenas de ovelhas. Entrevistou-se o pastor e outros membros da população, alarmada. Também eu fiquei preocupada, en garde. Os muros de betão que temos à volta são sonho, porque ainda estamos todos na aldeia e pressentimos, tememos e choramos o perigo do lobo como o pressentimos, tememos e chorámos durante séculos. É bom viver num país em que um acontecimento destes é notícia, em que a notícia é vivida em conjunto. Um país onde há pastores, lobos e onde alguns ainda apontam para os aviões quando os vêem cruzar o céu.
Mantra para um enterro
Não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte», não dizer «está um frio de morte».